segunda-feira, 6 de outubro de 2008

>>> DE CARONA NA KOMBI

Esta é a história de Naná, o motorista voluntário que leva crianças à escola, todos os dias, para fazer valer o direito à educação
“Bora, bora, bora. Todo mundo se ajeita, coloca a mochila para dentro, porque tá na hora de partir. Alguém ainda não assinou o livro?”. Essa reza o autônomo Naná tem todo dia, antes de fazer duas viagens na Kombi, para levar 30 crianças à escola pública municipal Nilo Pereira. Sai do lendário bairro do Poço da Panela, ainda sob o sol frio, em direção à Casa Amarela. O trajeto de dois quilômetros, quando feito a pé, leva meia hora. Isto se não chove, motivo para faltar à aula. Mas, na carona voluntária de Naná, não chega a dez minutos. E o vuco-vuco na Kombi só não é maior por conta disso. O futebol do final de semana, a música da moda, a cena da novela, a prova do dia, tudo distrai os passageiros e o motorista, a caminho da cidadania.

O livro de presença é a garantia de que o aluno não vai
faltar aula e já sabe escrever o nome completo.
A história da Kombi solidária existe há seis anos. A primeira viagem de todas aconteceu justamente pelo dia das crianças. Foi o jeito que Naná achou de presentear a meninada do Poço da Panela. Começou com cinco alunos. Na manhã seguinte, já havia 12. E uma semana depois, 32. Para agüentar na missão, conta com o apoio da Confraria dos Amigos do Poço, “um grupo de boêmios, moradores ou visitantes do bairro”, explica Naná, batizado de Evaldo Gomes de Moura, nascido em 1967 no município de João Alfredo, criado em Camaragibe e morador do Poço há 20 anos. A tal confraria é que passa o caderninho das contribuições. “Um dá R$ 2, outro dá R$ 5, R$ 10″. O dinheiro serve para abastecer de gás a Kombi branca 98 e fazer algum reparo essencial.

“Se alguém da comunidade se separa, também sou chamado para fazer a mudança. Se alguém passa mal, a Kombi vira ambulância. E em dia de jogo do Santinha, é a Kombi Coral”.

A Kombi abre às 6h30. Fica parada à espera dos passageiros defronte de dois patrimônios do Poço da Panela (e, por que não, de Pernambuco): a Igreja de Nossa Senhora da Saúde e o bar de seu Vital. O primeiro foi construído no século 19, como promessa feita pelo capitão Henrique Martins, dono de terras no povoado. A graça, atendida, era curar a esposa de uma doença grave. Seu Vital mora desde 1964 no bairro e há 38 anos tem o comércio que nunca mudou de lugar. “A venda-boteco-abrigo emocional de seu Vital é onde uma parte da população recifense se casa e outra parte bebe, celebrando os noivos, os jogos de dominó ou qualquer coisa em movimento”, define o jornalista e um dos colaboradores da Kombi, Samarone Lima.


Sandra Lima e a filha, Sandrini, aluna da 4ª série, à espera da condução que a menina usa há cinco anos

Quem vai na condução tem que assinar o livro de presença. Daiana, Dennys, Júlia, Maria, Romário, Tiago, Túlio… Até dar 15, número bastante para Naná fazer a primeira viagem. O motorista solidário confere nome por nome. “Ele pede para escrever o nome completo, para ver se a criança tem a letra bonitinha, se tá escrevendo direitinho, se sabe fazer todo”, conta a dona-de-casa Sandra Lima, de 45 anos, mãe de Sandrini, de 10, aluna da 4ª série da escola municipal. “Ele motiva mais, cobra e se relaciona direto com a escola. É um controle que ajuda os pais”. Mas Sandrini tem a própria explicação para gostar da história: prefere a “bagunça” da Kombi à caminhada de quase dois quilômetros, logo cedo da manhã, atravessando três avenidas bem movimentadas.

Naná não precisa pedir licença para entrar na Nilo Pereira. “Ele é o elo entre a escola e a comunidade. É praticamente a família dessas crianças. Ele sabe de tudo delas e da escola. Sabe quando tem reunião, quando não tem aula, quando o aluno é suspenso. Diminuíram muito as faltas e os atrasos, depois que ele passou a fazer esse trabalho. Pena que ele não tenha o reconhecimento do município. Ah, se todo mundo tivesse um Naná desse, a vida seria outra”, comenta a diretora da unidade, Damaris Diniz. A escola tem cerca de 1,1 mil alunos matriculados, em turmas até a 8ª série.

Romário Baltar, de 10 anos, aluno da 4ª série, vez por outra “ganha” um recadinho da direção da escola. “É, eu sou invocado, tiro muita brincadeira. Mas esse ano eu tô melhorando”, admite o menino, que foi batizado com esse nome porque nasceu durante a Copa do Mundo de 98, na França (justamente neste ano o atacante Romário foi cortado da Seleção Brasileira). “Quer dizer, foi minha mãe que disse isso, né?”. E apontando para o amigo Naná, Romário, o da Kombi, solta outra: “mas eu vim dessa pança aqui também”. Se qualquer criança adoece, o destino é o posto de saúde do Poço.

Aprender a dirigir foi uma necessidade para Naná. Começou a trabalhar muito cedo, aos 11 anos de idade, junto com o pai, num supermercado. Chegou a ser gerente e precisou de um carro. A lida interrompeu os estudos dele no segundo ano do 2º grau. Hoje, com a mesma Kombi que leva a criançada à escola, Naná ganha a vida, fazendo frete para um buffet. E só quando ele tem algum compromisso com a empresa é que a carona da criançada não acontece. Mesmo assim, deixa avisado com antecedência. “Se alguém da comunidade se separa, também sou chamado para fazer a mudança. Se alguém passa mal, a Kombi vira ambulância. E em dia de jogo do Santinha, é a Kombi Coral”, fala Naná. A esposa, Thereza, faz transporte escolar particular.

“Eu sofri um acidente de trânsito em 96 e recebi um seguro disso. Com o dinheiro, dei entrada na primeira Kombi e dei o resto em 36 meses. Essa 98 também foi financiada em três anos, mas tá paga”, diz o voluntário. Naná não sabe o nome do santo padroeiro dos motoristas, mas São Cristóvão certamente sabe (e protege) o de Naná. “A Kombi nunca me deixou na mão no caminho para a escola”.

* Matéria de Ana Braga, publicada no jornal "Diário de Pernambuco".

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